4 de fevereiro de 2008

"As máscaras" de Menotti Del Picchia...

Del Picchia narra, em versos, a estória de dois homens contando uma paixão que tiveram.Um deles, extrovertido atirado e galanteador...é o Arlequim...o outro tímido sonhador e apaixonado ..é Pierrot. No fim a mulher, Colombina, que é a mesma amada dos dois homens, aparece contando a estória dos dois amores que tivera.
Termina dizendo: "Queria dar ao Arlequim meu corpo e ao Pierrot minha alma". E conclui :"A história do amor se resume assim...um sonho de Pierrot e um beijo de Arlequim"... Muito lindo este texto! A delicadeza das palavras, o furor da paixão, o diálogo descontraído...me remeteram à cena do mesmo. Leiam, é muito rico!!! Vânia.
ARLEQUIM
Foi assim: deslumbrava a fidalga beleza da turba nos salões da Senhora Duquesa. Um cravo, em tom menor, numa voz quase humana, tecia o madrigal de uma antiga pavana. Eu descera ao jardim. Cheirava a heliotrópio e vi, como quem vê num vago sonho de ópio, uma loura mulher...
PIERROT
Loura?
ARLEQUIM
Como as espigas... Como os raios de sol e as moedas antigas...Notei-lhe, sob o luar, a cabeleira crespa, anca em forma de lira e a cintura de vespa, um cravo no listão que o seio lhe bifurca, pezinhos de mousmé, olhos grandes, de turca... A boca, onde o sorriso era como uma abelha, recendia tal qual uma rosa vermelha. PIERROT Falaste-lhe? ARLEQUIM Falei... PIERROT E a voz? ARLEQUIM Vaga e fugace. Tinha a voz de uma flor, se acaso a flor falasse...
PIERROT
E depois? ARLEQUIM
Eu fiquei, sob a noite estrelada, decidido a ousar tudo e não ousando nada... Vinha dela, pelo ar, espiritualizado numa onda volúpia, um cheiro de pecado... Tinha a fascinação satânica, envolvente, que tem por um batráquio o olhar duma serpente... e fiquei, mudo e só, deslumbrado e tristonho, sentindo que era real o que eu julgava um sonho! Em redor o jardim recendia. Umas poucas tulipas cor de sangue, abertas como bocas, pela voz do perfume insinuavam perfídias...
Tremia de pudor a carne das orquídeas... Os lírios senhoreais, esbeltos como galgos, abriram para o céu cinco dedos fidalgos fugindo à mão floral do cálix longo e fino. Um repuxo cantava assim como um violino e, orquestrando pelo ar as harmonias rotas, desmanchava-se em sons, ao desfazer-se em gotas! Entre a noite e a mulher, eu trêmulo hesitava: se a noite seduzia, a mulher deslumbrava! Dei uns passos Ao ruído agitou-se assustada. Viu-me...
PIERROT
E ela que fez?
ARLEQUIM
Deu uma gargalhada.
PIERROT
Por que?
ARLEQUIM
Sei lá! Mulher...Talvez porque ela achasse ridículo Arlequim com ar de Lovelace... Aconcheguei-me mais: “Deus a guarde, Senhora!” - Obrigada. Quem és? - “Um arlequim que a adora!”
Vinha do seio dela, entre a renda e a miçanga, um cheiro de mulher e um cheiro de cananga. Eram os olhos seus, sob a fronte alva e breve, como dois astros de ouro a arder num céu de neve. Mordia, por não rir, o lábio úmido e langue, vermelho como um corte inda vertendo sangue...E falei-lhe de amor...
PIERROT
E ela? ARLEQUIM
Ficou calada... Meu amor disse tudo, ela não disse nada, mas ouviu , com prazer, a frase que renova no amor que é sempre velho, a emoção sempre nova!
PIERROT
Que lhe disseste enfim?
ARLEQUIM
O ardor do meu desejo, a glória de arrancar dos seus lábios um beijo, a volúpia infernal dos seus olhos devassos, o prazer de a estreitar , nervoso, nos meus braços, de sentir a lascívia heril dos seus meneios, esmagar no meu peito a carne dos seus seios!
PIERROT (assustado)
Tu ousaste demais...
ARLEQUIM (cínico)
Ingênuo! A mulher bela adora quem lhe diz tudo o que é lindo nela. Ousa tudo, porque todo o homem enamorado se arrepende, afinal, de não ter tudo ousado.
PIERROT
E ela?
ARLEQUIM
Vinha pelo ar, dos zéfiros no adejo, um perfume de amor lascivo como um beijo, como se o mundo em flor vibrasse, quente e vivo, no erotismo triunfal de um amor coletivo!
PIERROT (fremindo)
E ela?
ARLEQUIM
Ansiando, ouviu toda essa paixão louca, levantou-se...
PIERROT
Depois?
ARLEQUIM (triunfante)
Deu-me um beijo na boca!
Um silêncio cheio de frêmito. Os lírios tremem. Pierrot olha o crescente. Arlequim dá um passo, vê a brandura, toma-a entre as mãos nervosas e magras e tange, distraído, as cordas que gemem.
ARLEQUIM
Linda viola.
PIERROT (alheado)
Bom som...
ARLEQUIM
Que musicais surpresas não encerra a mudez destas cordas retesas...
Confidencial a Pierrot:
Olha, penso, Pierrot, que não existe em suma, entre a viola e a mulher, diferença nenhuma. Questão de dedilhar, com certa audácia e calma, numa...estas cordas de aço, e na outra...as cordas d’alma!
Tela: Arlequim, Pierrot e Colombina - Di Cavalcanti(1922)